Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
***
Amor
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
***
Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.
A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.
Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.
Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.
A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.
Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.
Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.
***
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que o Amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.
***
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.
É tudo quanto sinto um desconcerto:
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando;
Num'hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um'hora.
Num'hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um'hora.
Se me pergunta alguém porque assi ando,
Respondo que não sei, porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
Respondo que não sei, porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
***
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.
Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
Está no pensamento como idéia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples, busca a forma.
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples, busca a forma.
***
Passo por meus trabalhos tão isento
De sentimento, grande nem pequeno,
Que, só pela vontade com que peno,
Me fica Amor devendo mais tormento.
De sentimento, grande nem pequeno,
Que, só pela vontade com que peno,
Me fica Amor devendo mais tormento.
Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
Temparando a triaga co veneno,
Que do penar a ordem desordeno,
Porque não mo consente o sofrimento.
Temparando a triaga co veneno,
Que do penar a ordem desordeno,
Porque não mo consente o sofrimento.
Porém, se esta fineza o Amor sente,
E pagar-me meu mal com mal pretende,
Torna-me com prazer como ao sol neve.
E pagar-me meu mal com mal pretende,
Torna-me com prazer como ao sol neve.
Mas se me vê cos males tão contente,
Faz-se avaro da pena, porque entende
Que, quanto mais me paga, mais me deve.
Faz-se avaro da pena, porque entende
Que, quanto mais me paga, mais me deve.
(Luis Vaz de Camões)
imagens:http://www.corbisimages.com
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